Resenha do livro “Canteiro de Obras” de Eliakim Oliveira

Por Felipe Lopes

A construção poética: breve comentário ao “Canteiro de Obras” de Eliakim Ferreira Oliveira

O livro de poemas “Canteiro de obras” de Eliakim Ferreira Oliveira é uma obra para ser lida com dedicação. Ela tem um estilo denso, truncado, como já vimos na sua obra anterior, chamada “polióptico” (veja o texto que escrevi sobre ele). No “canteiro de obras”, vários elementos da sua obra anterior se repetem, mas dessa vez sob um tema diferente: o da construção poética em analogia com a construção civil. Vale citar, em primeiro lugar, o comprometimento com a concretude, substantivos e verbos, quase sem adjetivos. Em segundo lugar, de novo se faz presente um livro de poemas como um projeto de investigação.
Cada um dos poemas mereceria uma análise detalhada. Eu, portanto, me limito a rabiscar alguns aspectos gerais da obra. O livro é essencialmente um metapoema, que se orienta de maneira sistemática e possui alguns termos que são característico da obra kantiana, como as proposições e as antinomias, teses e antíteses. No contexto kantiano, as antinomias são formas de mostrar como a razão, ao transcender o limite da experiência possível, cai em ilusões e em paradoxos indissolúveis. Estes conceitos não podem, no entanto, ser entendidos da maneira tradicional. Proposições e antinomias não conviveriam em harmonia na filosofia como o fazem no livro de poemas.
Percorrendo o campo semântico da construção civil, o livro incide justamente na subversão da divisão do trabalho. Enquanto o trabalho braçal e o trabalho intelectual se distinguem, o livro elabora o trabalho intelectual poético sob o paradigma do trabalho braçal da construção. Além disso, existe uma afirmação do conhecimento técnico. Tanto quanto o construtor precisa saber usar os instrumentos, o prumo, a lima, a serra, o poeta precisa saber usar as ferramentas poéticas, as figuras de linguagem, a ressignificação dos temos, a métrica, a rima. Como podemos ver nas antinomias, a construção exige força física, de modo que pergunta-se, sem solução, se o homem sai deformado do processo. Ao contrário disso, no “pintor de paredes” há uma dificuldade apenas aparente.
A poesia é um tipo de construção que incide não apenas sobre o mundo exterior, mas sobre o ser humano, aquele que a utiliza, como vemos em “instruções de uso”. Por isso “a poesia não é saída / porque é porta que se / abre pra dentro” (“Um gonzo sem dobradiça”). Essa porta, assim que aberta, não é jamais fechada. Aqui temos a abertura para a autorreflexão, pois a poesia nos convida a pensá-la e em consequência pensar a nós mesmos.
Quero chamar atenção aqui para a figura que aparece no poema “o mascate”. O mascate é o vendedor ambulante, que está sempre a negociar os preços. No mercado oficial, para cada coisa há um valor determinado, que é valor objetivo. Quando o mascate entra em cena, o valor é enredado em um jogo, em uma brincadeira, no qual a negociação se converte em confusão e desnorteia o comprador, dessa forma o valor objetivo perde objetividade e passa a ser vago. A poesia joga com as palavras da mesma forma, pois, quando entra em cena, a significação usual, dicionarizada, passa a ser alterada pelo jogo, pela negociação, que acaba perdendo o que tem de objetividade. Ela passa assim a ser veículo do indeterminado, enigma, que estimula a autorreflexão, como já citado.
O poema é feito ordenadamente (“a ordem”) essa ordem é a de juntar as palavras tentando com isso apreender a ordem do mundo. Mas, como veremos, sempre há um resíduo. A composição é feita com a matéria e os instrumentos, conteúdo e forma. A obra é composta a partir da sua relação intertextual. A construção e ressignificação das palavras não é imediata, mas é um diálogo permanente com os outros escritores e pensadores. “A arte de ajustar” no livro não é apenas formal, mas incide também sobre o sujeito, é como ajustar as próprias roupas. O poeta faz questão de dizer que o ajuste não é um simples pendurar, de modo a ficar ao sabor do vento. Ajustar é colocar na métrica, no prumo. É colocar, inclusive, “prumo no prumo”. O acabamento pode ser levado ao infinito, como um poema pode ser lapidado durante toda a vida. A limitação aqui presente é uma limitação de material. Falta cimento.
O poema é feito não como um edifício, com todos os aspectos previamente determinados, mas como uma casa, que vai sendo pensada a medida que vai sendo feita. Isso alude ao aspecto autônomo na poesia e na arte. O “fazer por fazer”, que vemos na “Arte de compor”, é uma afirmação da arte autônoma. Afirmar a autonomia não é ignorar o mundo, mas apostar na lógica de desenvolvimento interno da obra. Apenas esse desenvolvimento é capaz de chegar ao que não era pensável antes, ao novo. Uma arte que não se coloque em distanciamento da realidade corre o risco de não ver nada além da dinâmica de funcionamento do mundo existente. Para transformar é necessário desconstruir. Por isso a tendência a destruição, que inicialmente aparece como paradoxo, é essencial ao livro.
Entretanto, o livro se abstém de decretar a demolição. O que parece mais importante é a relação entre o que é construído e o que fica de resíduos da construção. O que sobra, o sobejo, ganha o foco em poemas centrais do livro. Em “a arte de limar” o sobejo é produto da civilização do metal, que não pode deixar de ser associado ao processo de racionalização, equivalência e calculabilidade. Tanto no primeiro quanto no último poema temos a afirmação, inesperada, de que a poesia não é o que foi construído mas o pó, e o sobejo. O pó que, de tão pesado, entorta o edifício (“apoesia”). “a poesia é sobra, leitor, não edifício”(“terra arrasada”). A poesia sem poesia, anunciada no primeiro verso, parece não ter lugar. Mas acredito que o problema da construção, presente no livro pode ser resolvido se pensarmos que o pó, a sobra, só são possíveis após a construção. Não há a poesia se não houver a construção que deixou resíduos a serem pensados.
Mesmo que a construção saia do foco, não significa que possa ser feita sem ordem, sem norma e sem cálculo. O fato de ser feita dessa forma é o que torna mais interessante a observação dos resíduos. Eles se tornam o que foge à ordem, à lógica e ao cálculo. Por isso o poema não termina em desconstrução, nos moldes dos concretistas. Na desconstrução tudo volta a ser inseparável, o pó e a parede. Buscamos o silêncio que vêm após tudo construído. Em outras palavras, o que buscamos na poesia é justamente o que não está nela, mas que sem ela seria impossível. É a entrelinha, o que está implícito, o fantasma que assombra o edifício do poema.

Felipe Lopes é escritor, autor do livro “Conto e Reconto” publicado pela editora Versos em Cantos.

O livro “Canteiro de Obras” está disponível para vendas com o autor Eliakim Oliveira ou pela loja da editora Versos em Cantos.

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