Um conto escrito por Eduardo Kawamura
Otário
Maldito seja o Estado!
Assim dizia José. Homem trabalhador, de bem, como sempre repetia. Hoje estava em Brasília se lamentando. Por qual motivo havia deixado a família para se juntar a tal propósito? Sim, era um patriota. Defendia o presidente, chamava-o de mito, deveria ser visto como um herói para a nação. Mas olha só, estava preso, sendo motivo de chacota, sob o risco de precisar cumprir pena por terrorismo.
Aquilo que ele vivia agora era algo que nunca havia visto em vida. Estava preso. Tratado como criminoso. Esperava, de fato, ser visto como um herói, um cidadão que teve a coragem de ser a ponta de lança em um movimento importante. E ele, assim pensava, não fazia por si, seus atos eram coordenados por pessoas importantes, ligadas a ninguém menos que o próprio messias.
Agora não tinha mais ideia do que de fato poderia acontecer. Havia todo tipo de falatório, porém, começava a perceber que tudo era muito vago. Talvez muito do que se dizia nem era verdade. Pensava muito em sua filha e em sua esposa que deixara em casa para vir ao movimento. De sua mulher até teve apoio. Porém, de sua filha, após ingressar na universidade, apenas o olhava com desdém e discordava de seus posicionamentos. O que era um absurdo. Afinal, ele que custeava seus estudos, ele que dava a vida boa que ela tinha. Inclusive, já há algum tempo que tinha percebido algumas fotos de sua filha com um jovem estranho, com cara de petista. Consegue imaginar, pensava, eu aqui e ela se metendo com um comunista. É muito castigo para um pai zeloso pela família e pela pátria.
Ele tinha 53 anos. Casado, comerciante. Cristão e morador do interior de São Paulo. Patriota, claro. Vestia a camisa da seleção, batia panela e votava na direita, e, sempre que tinha oportunidade, na extrema-direita. Sua esposa não veio a Brasília. Nem quando foi preso. Alegou precisar cuidar dos negócios. Seu irmão que estava a cargo do processo. O que cria mais um monstro em sua cabeça. Ser condenado, ver sua filha se metendo com um comunista e sua mulher sozinha, com seu dinheiro, fazendo o que bem-quisesse. Se ele ficasse preso por muito tempo, ela o esperaria? Seria um patriota corno? Ao menos já conhecia muitas canções sertanejas para aplacar a dor na testa que já estava apontando.
Não bastasse tudo isso, sentia receio da cela. Se ficasse preso com estupradores? O que poderia acontecer? Já ouvira falar sobre homens que, durante a prisão, viraram mulher de preso. Ele não tinha direito a uma cela especial. Chegava a sonhar com a situação. Várias vezes, nas últimas noites, sonhou que estava sendo violentado por presos. Acordava suado, assustado. O pior é se alguém soubesse. Ter sido mulher de preso durante a pena talvez não fosse o problema maior, o pior seria se seus amigos soubessem. Em todo caso, o segredo seria sempre a melhor escolha.
Ainda tentava resguardar um pouco de esperança. Porém, não havia mais certeza. Diziam alguns que o mito estava para voltar ao Brasil. Os militares só estavam aguardando a ordem do mito que estava nos EUA organizando um apoio estratégico para a intervenção.
Mas desconfiava. Talvez tudo isso não passasse de histórias. Quem sabe até tivesse sido usado como massa de manobra. No fim, começava a sentir que havia passado por otário.
Otário, no sentido mais cruel que pode existir nesta palavra.
Otário.